segunda-feira, 3 de agosto de 2009

ilimitado, parte 8

Estava muito ansioso para chegar em casa. Inventei a desculpa que estava cansado e que queria ir para casa. Todos concordaram em ir e fomos pegar o ônibus.

O ônibus estava um pouco cheio, mas consegui me sentar depois da metade do caminho até minha casa. Comecei a olhar pela janela e pensar sobre o que estava acontecendo comigo, mas minha atenção logo se voltou ao refrão de uma música que estava sendo tocada no rádio do ônibus. Comecei a cantar baixo o refrão que dizia: “gira e volta uma volta e meia, e gira todo dia meia volta”. Não conseguia entender muito bem o significado do refrão e, aparentemente, o motorista também não, pois logo mudou a estação, parando em uma que mais o agradava.

O ônibus é um lugar um pouco especial para mim, pois meus pais me contaram que foi nele que eles se conheceram. Aparentemente, meus pais usavam a mesma linha de ônibus por um bom tempo para irem para o colégio, mas nunca haviam pegado o mesmo ônibus. No último ano no colégio finalmente aconteceu à coincidência deles se encontrarem e, como dizem, foi amor a primeira vista.

Cheguei em casa um pouco cansado realmente, minha casa ficava alguns quarteirões de onde o ônibus me deixava.

Entrando pela porta me deparei, como de costume, com o porta-retrato com a foto de minha família que foi tirada há alguns anos na praia. Lá estávamos nós três sorrindo deitados na areia úmida e um pouco preocupados se a câmera iria molhar.

Entrando na cozinha encontrei minha mãe que estava terminando de fazer algumas trufas de chocolate. Além da trufa ela aprendeu recentemente a fazer um delicioso bolo de chocolate com alguma de suas amigas.

-Ainda hoje você vai comer alguns, filho. – Disse ela sorrindo e com um tom de voz carinhoso que só uma mãe consegue fazer para seu filho.
-Certo mãe, mas provavelmente vou só comer alguma coisa e dormir, estou muito cansado. – Disse tentando expressar um cansaço maior do que eu sentia.
-E o papai? – Perguntei em seguida.
-Ainda no trabalho, mas deve já estar chegando. E a competição como foi?
-Terceiro lugar. – Falei um pouco desanimado.
-Nossa! Parabéns! – Falou ela com um tom animado. Provavelmente não estava querendo me animar e sim sendo sincera.

Sorri para ela e sai para tomar banho. Voltando, fui para a cozinha procurar algo para comer e minha mãe já tinha feito dois sanduíches para mim.

Agradeci e foi comer em frente a TV. Deixei no canal que estava, era um jornal, e me concentrei em comer mais rápido do que de costume. Era uma notícia sobre algum confronto entre manifestantes e policiais em algum país. Antigamente não assistia jornal, preferia um filme, e ainda prefiro, mas comecei a assistir algumas vezes neste ano porque me disseram que era importante para o vestibular.

Acabei de comer, fui avisar para a minha mãe que já ia dormir e fui em direção ao meu quarto. Nossos quartos ficavam em um pequeno corredor formado pela parede deles e pela parede que ficava na sala. Passei pela primeira porta, que era a porta do quarto dos meus pais, e cheguei à minha. Antes de entrar, olhei para a terceira e última porta que ficava no final do corredor. Era o quarto onde meu pai tinha sua mini biblioteca particular.

Às vezes me deparo com a idéia de como seria bom ter um irmãozinho. Não só alguém que eu pudesse perturbar e culpar quando eu quebrasse alguma coisa, mas alguém que eu pudesse sempre contar e me divertir. Ainda tenho esperança, mas acho pouco provável os meus pais quererem ter outro filho. Bebês devem dar muito trabalho. Lembrando dessa idéia e olhando para o quarto, fico imaginando que lá seria o quarto do meu, não provável, irmãozinho.

Entrei no meu quarto e fui me deitar. Não estava com sono e nem havia intenção de dormir naquele momento, o que iria fazer era testar a idéia que eu tive.

Fechei os meus olhos e me concentrei. Uma maneira de estar onde não seria possível, de ver o que está acontecendo sem realmente estar no lugar. Comecei a não sentir mais meus pés e minhas mãos, a escuridão que estava vendo estava estranhamente começando a desaparecer e, quando percebi, estava em pé em frente a minha cama e podia me ver deitado de olhos fechados.

Podia movimentar meus pés e meus braços, mas não conseguia sair do lugar. Também não conseguia sentir e nem segurar o relógio que estava ao meu alcance perto de onde eu dormia. Percebia claramente que não estava morto, pois podia me ver respirando e mexendo os olhos de vez em quando.

Sentei-me para pensar um pouco e tentar achar uma solução de como conseguiria me movimentar. Alguns minutos depois vi minha mãe, com uma trufa na mão, indo no meu quarto verificar se eu estava realmente dormindo. Chamou meu nome bem baixo e, como não respondi, saiu do meu quarto um pouco decepcionada. Aparentemente, além de não poder pegar objetos, também não podia ser visto.

Apareci na cozinha. Simplesmente estava agora sentado no chão da cozinha onde minha mãe continuava a fazer trufas. Eu apenas quis estar na cozinha para ver se ela ainda estava decepcionada e apareci lá.

Levantei-me e agora estava de volta ao meu quarto, depois na sala, depois na parada de ônibus perto de casa e depois de volta para o meu quarto. Eu não me movimentava com meus pés e sim com o meu desejo.

Não sabia exatamente onde eu gostaria de estar, mas agora estava em um grande cruzamento onde uma multidão passava de um lado para outro tentando chegar aos seus destinos. Estava exatamente no lugar que eu havia visto em uma foto que achei quando procurava informações sobre Hikari. Estava em sua cidade natal, lugar que possuía prédios enormes com grandes telas de TV que passavam propaganda e que havia uma grande multidão de pessoas em todas as quatro esquinas que via.

Era estranha, e um pouco desconfortável, ter por diversas vezes pessoas passando por mim, sem me ver e sem me tocar. Não podia sentir cheiros e nem o vento passar. Mesmo no meio de tantas pessoas comecei a me sentir só.

Não sabia como chegar ao show, não podia pedir informações e não entendia a maioria das informações escritas que encontrava. Fui “pulando” de prédio em prédio até chegar ao mais auto para tentar ver alguma luz que indicasse um show. Não encontrei, mas algo que estava passando na TV chamou minha atenção.

Era uma espécie de jornal que estava passando várias notícias bem rápidas e em um deles apareceu um repórter que estava no show que eu tanto procurava. Fui imediatamente para o lugar e apareci no meio de uma enorme multidão.

Tentei prestar atenção e assistir o show, mas ficava muito incomodado quando as pessoas me atravessavam. Fiquei procurando um lugar para apreciar o show e vi uma estrutura para controle do som do show no meio da multidão e achei o lugar ideal para mim.

Fiquei sentado no teto da estrutura. Era incrível estar lá, se a música da Hikari já me passava algo quando escutava em um CD, ao vivo ela passava um enorme sentimento que fazia eu me arrepiar. Qualquer sentimento de solidão havia sumido e estava sentindo uma mistura de paz e felicidade.

-Esta gostando do show? – Disse-me uma voz um pouco familiar.

Olhei assustado para o meu lado direito e lá estava Chocolate sentado de um jeito descontraído como se aquela situação fosse algo bastante normal para ele.

-Chocolate? Você pode me ver? – Perguntei gritando por causa do som do show.
-Claro e, por favor, não grite, você acha realmente que você esta usando sua boca e eu meus ouvidos? – Disse ele de uma forma calma.

Ignorando sua resposta tentei perguntar algo, mas logo ele continuou:

-Você está aprendendo rápido, esse eu demorei um pouco para descobrir como fazer.
-Como eu sei fazer isso? – Disse agora em um tom normal.
-O que você esta usando é o que nós chamamos de instinto, mas nem tudo você irá conseguir fazer por instinto. Ele age muito na sorte ou pressão.

E olhando para o show de uma forma diferente disse:

-Não entendo por que ela continua fazendo isso, mas não é um bom sinal ela estar aqui.
-Você conhece a Hikari?
-É assim que vocês a chamam aqui? “O ilimitado que decidiu cantar” foi o título que ela recebeu.
-Ilimitado? Quer dizer que ela...? – Falei admirado, mas não completei a frase para que ele continuasse.
-Ela costuma aparecer em mundos que estão ou irão passar por grandes dificuldades, tentando trazer um pouco de sanidade e esperança a esses mundos.
-Grandes dificuldades? Como assim?
-Algo entre grandes guerras e uma destruição completa. – Disse ele de uma forma calma e natural.

Olhei para ele admirado, mas fiquei com receio de continuar perguntando. Depois de um tempo calados em que apreciávamos o show ele se despediu e sumiu, e eu fiquei aproveitando o final do show enquanto o sol aparecia ao longe.